Economia

A pobreza que Pelotas não supera

Pujança intelectual e econômica contrasta com a miséria histórica que segue atingindo milhares de cidadãos

Foto: Jô Folha - DP - Teodoro Oliveira tem 72 anos e mora na região das Doquinhas, no zona do Porto

Contrastando com o imenso potencial econômico, científico e tecnológico de uma cidade cheia de universidades, empresas e capital intelectual e cultural, uma Pelotas de pobreza e miséria se esconde dos olhos dos mais privilegiados. Tão longe e tão perto, a falta de condições mínimas de sobrevivência é rotina na vida de centenas de famílias, que contam com o trabalho do dia para comer à noite. Às vezes, nem isso.

Esse cenário se reflete nos números de quem busca por assistência do poder público. Em abril, 21.439 famílias de Pelotas foram beneficiadas pelo programa Bolsa Família. Num total, foram mais de R$ 14 milhões enviados pelo governo federal no mês - um benefício médio de R$ 667,92 por família. No Cadastro Único, ferramenta do governo federal que cadastra famílias de baixa renda, são 48.878 famílias cadastradas.

O número de famílias beneficiárias é o maior desde que o programa foi instituído, em 2004, e teve um salto em outubro de 2021, quando a iniciativa foi transformada no Auxílio Brasil. Hoje, com o antigo nome da política assistencial retomado pelo governo federal, Pelotas é a segunda cidade gaúcha com maior número de beneficiários do Bolsa Família, ficando atrás de Porto Alegre, com 82 mil famílias, e seguida por Canoas, com 20 mil beneficiários.

Ao encontro disso, o estudo Mapa da Nova Pobreza, divulgado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2022, mostra que o contingente de pessoas no País com renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais atingiu 62,9 milhões de brasileiros em 2021, representando 29,62% da população. Na área de abrangência da pesquisa que reúne Pelotas e outros 56 municípios gaúchos, a pobreza atinge 19,17% da população, fazendo dessa a região mais pobre do Rio Grande do Sul.

Uma vida de dificuldades
Teodoro Oliveira tem 72 anos e mora em um pequeno chalé construído pelas próprias mãos na região das Doquinhas, no zona do Porto, quase às margens do canal São Gonçalo. Natural de Canguçu, se instalou em Pelotas para construir sua vida, trabalhando como servente de pedreiro e em engenhos até se aposentar. Hoje, vive do que recebe da Previdência Social e diz não acessar outros benefícios do governo. Para ajudar na subsistência, conta com o apoio de igrejas que distribuem cestas de alimentos todos os meses.

"Antigamente eu trabalhava na lavoura, lá em Canguçu. Depois, desisti da lavoura e vim para a cidade trabalhar nas obras. Andei por esse mundo, trabalhando nos engenhos por aí. Nunca tive paradeiro certo, mas pedi uma lona e fiz um barraco aqui faz mais de 20 anos", compartilha Oliveira. Aquela primeira moradia improvisada já não existe, pegou fogo. Foi preciso fazer uma nova, com madeiras que foi encontrando. Agora, atento ao inverno que se aproxima, tenta se preparar para encarar os dias frios. Recentemente, ganhou um fogão à lenha que será instalado em breve. "É frio, mas não alaga", resume sobre a situação de sua casa.

Clovis Leal vive no Vasco Pires há cerca de sete anos; ele não tem água encanada


Em outro ponto da cidade, Clovis Leal vive no Vasco Pires há cerca de sete anos. Sem água encanada, só recentemente teve energia elétrica instalada na casa em que vive com a mulher e os dois filhos mais novos. Depois de ter trabalhado como pedreiro, agora conta com a renda que consegue como catador de recicláveis, além do trabalho da esposa como diarista. Como complemento, há o suporte do Bolsa Família. "Tá feio o troço, o dinheiro tá pouco. Pelo menos a gente tem para dar o leite para o mandinho", diz, com o caçula no colo.

A esperança de melhorar de vida é depositada nas oportunidades que seus sucessores podem ter. Clovis fala com orgulho do filho de dez anos. "Eu quero tudo de bom para eles. O outro está na quinta série já, com dez anos. Está estudando, é bem inteligente."

Pobreza de origem histórica
A cientista política e social Elis Radmann aponta que, embora a situação de Pelotas chame atenção, o cenário da pobreza é similar em toda a região. "Isso tem a ver com várias características. A principal delas é a falta de potencialidades econômicas. Isso vem piorando ao longo do tempo, o que exige que Pelotas tenha, efetivamente, novas formas de produção que consigam ocupar essa mão de obra mais vulnerável", aponta.


A cientista social retoma as raízes históricas da pobreza. "Temos uma colonização que se dá a partir de portugueses, um domínio imperial, tem a produção do charque e tem a escravidão. Não se pode perder isso de vista. Tem uma mão de obra que vem para cá para ser escravizada e vai iniciar a sua história completamente marginalizada. Você tem uma industrialização, nos anos 1930, associada à cultura da compota, do doce, e outras frentes industriais atraindo pessoas em vulnerabilidade social de toda a região. Quando essas opções de trabalho cessam, deixam muitas famílias sem perspectiva", reflete, citando famílias que deixaram o campo com o êxodo rural e não têm qualificação para ocupar postos de trabalho na cidade.

"Somos um berço de educação que não chega na ponta. Enquanto temos universidades e IFSul, é como se fossem realidades distintas. Essa margem de vulnerabilidade acaba se mantendo ao longo dos últimos 60 anos", avalia. Saída que para reduzir a pobreza que, para Elis, está atrelada à união do poder público e da iniciativa privada. "Precisamos de um plano de desenvolvimento local que integre todos esses agentes em torno de uma vocação econômica que consiga fazer com que Pelotas avance em direção à inclusão econômica."

Cidade em expansão e exclusão
O mestre em arquitetura e urbanista Rodolfo Ribeiro, da UFPel, que pesquisa a urbanização precária, entende que a perpetuação da pobreza faz parte da constituição das cidades, com a segregação de populações carentes para fora das zonas desenvolvidas. Um processo conhecido como gentrificação e que se dá desde a formação no século 19, com o fluxo de trabalhadores escravizados.


"É uma combinação de eventos. A Lei de Terras (de 1850) e a liberação dos povos negros escravizados. Até então, não se tinha divisão da propriedade, só que não é todo mundo que pode acessar a terra. Só vai poder acessar quem tem bens. Aí se libera as pessoas escravizadas e para onde elas vão? A partir daí, começa uma espécie de engenharia de negócio, que é criar casas de aluguel, cortiços, para dar um espaço para essas pessoas na cidade", diz Ribeiro. Lógica que, segundo ele, é mantida até hoje com a especulação imobiliária de áreas habitadas por cidadãos mais pobres.

Para a antropóloga e professora da UFPel Louise Alfonso, o contexto atual se enquadra em uma tendência vista em outras cidades. "Pelotas está dentro da crise das cidades hoje, que é pensar que trabalho é esse. Como essas pessoas vão transformar sua realidade se não existe nem trabalho? Esses projetos sociais são importantíssimos, estão tirando as pessoas da miséria, mas não transformam a base, que é pensar uma outra forma de se fazer a cidade. Precisamos entender que essa redução da desigualdade urbana só se dá a partir de uma construção coletiva da cidade a partir de uma garantia dos direitos e dos interesses da maioria, e não apenas de quem tem dinheiro", analisa.

Prefeitura busca ofertar qualificação
Secretário Municipal de Assistência Social, Tiago Bündchen avalia que o alto volume de beneficiários de programas sociais em Pelotas se deve à eficiência da pasta em cadastrar a população carente. "Temos um dos melhores Cadastros Únicos do Estado, em média maior que a nacional", sustenta. Para Bündchen, é necessário que a pasta dê condições para que os beneficiários não necessitem mais do atendimento. Ele lista medidas como a oferta de cursos profissionalizantes que atendam às demandas do mercado local.


"Vamos assinar o contrato do Capacitar Pelotas abrindo 500 vagas de capacitação no Sistema S, 14 cursos. Quinhentas pessoas que vão fazer curso de frentista, de operador de caixa, de atendente de farmácia, de instalador de ar-condicionado, de azulejista. São cursos rápidos, com vale-transporte e lanche", detalha, afirmando a necessidade de garantir o transporte para incentivar a participação. A projeção de Bündchen é ofertar novos cursos ainda em 2023.

O secretário destaca também como ação importante do Município através de sua pasta a criação de oportunidades através da educação, citando como exemplo a retomada de cursos pré-Enem para alunos carentes, facilitando a entrada no Ensino Superior.

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